Via Liana Utinguassu:
No 19 de abril, dia do índio, uma reflexão sobre a realidade Guarani no Rio Grande do Sul: em luta pela defesa da vida e do território!
Sou filho de um povo milenar. Muito antes dos europeus chegarem nestas terras o meu povo vivia com alegria e esperança dentro de um amplo território. Nele existia a dignidade. Nele se alimentava os sonhos, a relação com Deus nos cultos e ritos de uma religião que o meu povo tinha naturalmente. Nele se plantava e colhia o alimento. A vida era cultivada na harmonia e na reciprocidade.
Mas, repentinamente, os nossos antepassados se depararam com o inevitável. A civilização branca invadiu as terras, as vidas, as tradições, a cultura e a religião. Contra nossa gente iniciaram grandes batalhas. A ideologia de outro mundo foi sendo imposta para dominar e destruir o modo de ser, pensar e de se relacionar com a natureza, com a terra e com toda a vida que vigorosamente se fazia presente. Os nossos ancestrais e a natureza eram partes inseparáveis, a natureza cuidava e alimentava a nossa gente e nossos povos a ela protegiam e a tratavam com amor e respeito.
A partir de então o mundo mudou. Sobre meu povo desceu a ruína. A terra foi tomada, as pessoas eram caçadas e tratadas como animais. Foram escravizados, torturados e o modo de ser e de pensar Guarani foi atacado pela intolerância e imposição de outro modelo de civilização e cultura. Fomos proibidos de falar nossa língua. Tudo aquilo que era vida e reciprocidade se tornou pecado. A fé em Nhanderu foi transformada em feitiçaria. As crenças milenares ensinadas e vivenciadas foram atacadas por uma cruz que não era a cruz de nosso povo. O espírito Guarani, a alma Guarani foi rasgada por esta cruz. E os corpos, a vida física, por sua vez, eram cortados pela espada que acompanhava a cruz.
E assim, depois de milhares de anos, foi afetada tragicamente uma história que poderia ser um sinal de esperança para uma humanidade que vive uma profunda crise. A civilização branca vem construindo a sua própria destruição, a sua própria ruína. Esse é o saldo para toda a humanidade.
Apesar de vivermos num vasto continente, só nos sobrou pequenas parcelas de terras na Argentina, Bolívia, Paraguai e Brasil. Somos quase três centenas de milhares de pessoas do Povo Guarani Mbya, Nhendewa, Kaiowá. Cultivamos com sabedoria e paciência a nossa cultura. Não negamos o modo de ser e de pensar de nossos antepassados. Os seus ensinamentos nos acompanham no nosso constante caminhar. Mantemos viva a nossa língua Guarani, cultuamos nossa crença em Nhanderu. Acreditamos nas palavras das pessoas e confiamos nelas, porque é assim que se deve ser na vida.
Nós acreditamos que Nhanderu entregou a terra para ser cuidada e partilhada. Ela é nossa e dos demais seres viventes. Por isso, procuramos, ao longo dos anos, zelar por ela. O homem dito civilizado jamais poderá atribuir aos Guarani a devastação e o desrespeito que a terra enfrenta. Valorizamos a terra como parte de nosso corpo. Se cortarmos uma mão, arrancamos um membro importante do corpo. E assim é com a terra para os Guarani, não admitimos que ela venha a ser maltratada, rasgada, destruída.
Mas ao olharmos para o nosso planeta, em especial para o Brasil, a gente vê a terra sofrendo. Suas matas foram cortadas e no seu lugar construíram cidades, indústrias, grandes plantações. Os rios foram transformados em depósitos de dejetos de fábricas, de lavouras. Os rios estão morrendo porque as suas águas correm poluídas, contaminadas. Do pouco que ainda restou querem represar através de grandes e pequenas barragens. Querem, com isso, gerar mais energia para novas indústrias. E com as novas indústrias teremos ainda mais dejetos, mais poluição e a vida do planeta, a vida no Brasil, vai se acabando.
Durante as nossas reuniões, de lideranças das comunidades Guarani, os nossos Karaí sempre perguntam: “Até onde os Juruá (homem branco) pensam que podem ir? Será que eles não sabem que estão acabando com a terra, com a vida? Será que eles não percebem que a natureza precisa ser bem cuidada?” Eles não entendem como podem desprezar a vida só pela ambição de ter mais dinheiro e mais poder. Para os nossos líderes religiosos a vida é simples. Eles, na sua humildade e sabedoria, têm a certeza de que não é do muito que se tem, não são as riquezas materiais que darão alegria e esperança para os homens e mulheres. Eles afirmam com convicção de que se a terra estiver viva, protegida e valorizada, todos terão exatamente aquilo que necessitam para viver.
E nesta concepção, no modo de pensar a terra e os seus bens, é que habita a grande diferença entre os povos indígenas e a civilização branca. Para os Juruá somente tem sentido viver com dinheiro, muitas posses, muitas riquezas. No entanto, para eles, o custo da riqueza acumulada não entra na conta, ou como muito se fala entre os brancos, não é contabilizada. De tudo o que se extrai da terra há custos e muitos deles são impagáveis com dinheiro e poder. A devastação alucinada da terra compromete o restante da vida dos demais filhos da terra. Estão matando a própria mãe em função da ganância.
Apesar de uma história de sofrimentos somos um povo de resistência. Resistimos à colonização opressora. Resistimos e enfrentamos esta civilização que domina o nosso Brasil. Tornaram-nos minorias onde éramos a maioria. Queriam, naquela época, mudar nossa alma, porque acreditavam, os ditos civilizados, que a nossa alma era pagã, impura, pecadora. Não nos aceitavam como gente. E a isso resistimos. Muitos dos líderes assumiram a defesa do povo, da terra e das nossas tradições. Enfrentaram as espadas, os canhões dos civilizados.
Nós resistimos ao modelo de dominação dos brancos e nos colocamos contra as suas estruturas de poder e de fazer política. Acreditamos na nossa força e na nossa cultura, por isso resistimos aos massacres, à catequização forçada, à escravização de nossos antepassados, às guerras contra nosso povo, que foram impostas porque queríamos viver em paz nas nossas terras. Resistimos e vivemos construindo história, embora esta seja negada por aqueles que fazem livros.
A cultura dos brancos, dos chamamos Juruá, de fato não serve como modelo para o mundo de ninguém. A mãe terra está sendo consumida pela fumaça das usinas, dos carros. Está sendo contaminada com os venenos de fábricas e plantações. Está sendo tratada como mercadoria para ser consumida e depois não restará nada dela. Por tudo isso os Guarani lutam por uma terra sem mal, onde não existirão nem maiores e nem menores, onde todos seremos filhos da mesma terra mãe.
Hoje em dia, para as nossas famílias viverem, o governo vem destinando alguns metros de terra, que na maioria das vezes são devolutas, nas margens de estradas, sobre barrancos, na beira de sangas poluídas e/ou em pequenas capoeiras próximas de grandes fazendas. Por nos tratarem como restos nos destinam as pequenas sobras de terras que pelos brancos são desprezadas. E não raras vezes dizem que somos preguiçosos, que não queremos trabalhar e que vivemos como bichos. Mas quando decidimos retomar terras que são nossas, se reivindicamos direitos, se exigimos do poder público que nos respeite e demarque nossas terras então somos tratados com arrogância e dizem que somos manipulados por terceiros.
Mas é neste contexto, onde as visões de mundo são diferentes, que nós os Guarani e os demais povos indígenas lutamos por direito e dignidade. Lutamos por respeito à cultura, à terra e ao futuro. Nós ainda acreditamos que é possível reverter esta realidade. E os nossos líderes religiosos sempre dizem que, embora os Juruá insistam em destruir a terra, ela existirá enquanto os Guarani existirem. Destruindo os Guarani, destruirão a última esperança de vida no planeta. Faço essa referência sobre os líderes do meu povo, mas já ouvi outros líderes indígenas, como o Davi Yanomami, falar a mesma coisa, ou seja, se destruírem os filhos da terra, destruirão em definitivo a terra inteira.
Nosso povo luta e continuará a lutar pela terra. De nosso modo, com paciência, mas com a força sagrada de nossos velhos, nossos Karaí, as Kunhã Karaí, que nos ensinam a viver, nos aconselham a sermos bons com todas as pessoas, a tratar todos com igualdade. E seguiremos, andando, procurando por nossa terra, construindo nosso bem viver e exigindo das autoridades que cumpram com seu dever de demarcar as terras que as leis dos brancos, escritas pelos brancos, determinam que esse nosso direito deve ser assegurado.
Aproveito a oportunidade para apresentar as reivindicações dos Guarani, na expectativa de que elas sejam devidamente atendidas, uma vez que aqui nesta audiência se encontram representantes dos governos estadual e federal:
Que o governo federal, em articulação com o governo do estado do Rio Grande do Sul, busque resolver um dos graves problemas que impede a ocupação e o usufruto de nossas terras, aquelas já demarcadas, que são os pagamentos das indenizações aos ocupantes não indígenas de nossas terras. Esta é uma obrigação da Funai, pois cabe a ela buscar soluções para as questões relativas aos problemas fundiários. Pedimos, mais uma vez, entendimentos entre os governos federal e estadual no que se refere ao pagamento dos não-indígenas pelas terras que no passado foram loteadas e tituladas pelo governo do Estado e que estão sendo demarcadas como terras indígenas. Com isso, se pode acelerar os processos e diminuir os conflitos. Segue relação das terras prioritárias:
Cantagalo
O Cantagalo é uma das aldeias mais antigas no estado. Os estudos já foram concluídos, tudo já foi feito, mas os colonos ainda estão lá. Não aceitamos mais a demora na retirada dos ocupantes brancos. Já se passam anos da decisão da homologação da terra, mas até agora a Funai não pagou as indenizações e nem procedeu a retirada dos brancos da terra indígena. Além da demora na demarcação, as cercas estão abertas, e os animais dos vizinhos entram na terra e comem as plantações da comunidade indígena. A comunidade está muito desanimada com a demora.
Todas as nossas comunidades têm muita preocupação por causa das incertezas quanto ao futuro, principalmente porque não temos terra para plantar e dela extrair o sustento. No nosso modo de pensar e viver é bem diferente dos Juruá. Nós sempre procuramos o bem viver, viver tranqüilo, plantar para o consumo das famílias. Os juruá querem plantar para vender, usam a terra como mercadoria e não pra vida.
Mato Preto
Solicitamos à FUNAI que assegure o direito a terra tradicional, garantindo a continuidade do procedimento demarcatório uma vez que o relatório de identificação da área foi publicado. É necessário agilidade na análise das contestações apresentadas como resultado do direito ao contraditório das partes interessadas. A comunidade aguarda com expectativa a publicação da portaria declaratória da área.
Irapuã
Agora que finalmente saiu a publicação de identificação e delimitação da área, solicitamos rapidez nos demais passos do procedimento demarcatório, principalmente para que se possa estruturar comunidade e construir as casas longe da beira da estrada.
Estrela Velha
O GT é do início de 2008 e ainda não foi concluído. A TI Kaguy Poty é uma das áreas mais tranqüilas para os estudos e conclusão do procedimento de demarcação no estado, pois os não-indígenas têm vontade de sair. Por causa da demora do GT, estão começando a mudar de idéia, e conflitos podem ocorrer. Exigimos que os responsáveis pelos estudos de identificação e delimitação sejam cobrados pela FUNAI para apresentar imediatamente o relatório dos estudos de forma definitiva.
Capivari, Lomba do Pinheiro, Estiva e Lami
Para estas antigas terras guarani houve o compromisso da Funai de que o Gt seria constituído ainda no governo passado. A Funai não cumpriu com seu compromisso. São situações difíceis, em função de nas áreas viverem muitas famílias, que aguardam com ansiedade pelos encaminhamentos da Funai. Exigimos que o prometido seja cumprido, e essas terras sejam contempladas e demarcadas com a criação de GT`s. ESSA É A PRIORIDADE PARA 2011.
Itapuã, Ponta da Formiga, Morro do Coco, Arroio do Conde, Petim e Passo Grande
Estas terras estão tiveram os estudos de identificação e delimitação realizados nos anos 2008 e 2009. O relatório foi concluído e entregue para a Funai. Exigimos que o órgão indigenista proceda a análise e publique o referido estudo. Vale ressaltar que as comunidades vivem em pequenas áreas e aguardam pelo efetivo reconhecimento de suas terras.
Coxilha da Cruz
Aguardamos a solução para a completa regularização do Tekoá Porã, desapropriada pelo governo estadual em 2000, mas até hoje aguardando a finalização das indenizações. O governo estadual não cumpriu com o protocolo de intenções para terminar o pagamento. Atualmente a comunidade ocupa apenas a metade da área desapropriada.
Mata São Lourenço e Esquina Ezequiel
A Mata São Lourenço é uma das poucas áreas com matas boas na região das Missões. A FUNAI deve encaminhar um GT, antes que essa mata seja devastada para dar lugar a monocultura da soja. A Esquina Ezequiel, nas margens do Arroio Piratini, deve estar junto com o GT da Mata São Lourenço, pois também é uma área importante para a formação de aldeia na região das Missões.
Acampamento de Santa Maria
A situação das famílias acampadas no município de Santa Maria necessita de atenção da FUNAI. Estão numa pequena faixa de terra na beira da estrada, e correm riscos quando vão buscar água e comercializar seus produtos. Aguardam por uma solução para melhorar as condições de vida da comunidade. A comunidade reivindica que a Funai proceda aos estudos de uma área para o assentamento das famílias.
Águas Brancas
Exige-se que a Funai conclua o procedimento de demarcação da TI Águas Brancas, pois a portaria declaratória desta área foi publicada há mais de uma década.
Diante de nossas reivindicações, que são legítimas, cabe ao governo respeitar a Constituição Federal demarcando as nossas terras tradicionais. Exigimos também que cumpra com as normas e convenções internacionais, especialmente a Convenção 169 da OIT, sobre questões que nos afetam, como tem sido os empreendimentos de duplicações de estradas e barragens que cortam e inundam as nossas terras.
Reivindicamos também que as políticas de assistência sejam efetivamente executadas, tendo em conta as nossas necessidades, direitos e as diferenças.
Quero, por fim agradecer a Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, que ao longo dos últimos anos, vem prestando importante contribuição no debate e na divulgação sobre a questão indígena e em especial agradeço pela postura que assumem em defesa dos direitos humanos, em defesa de nossos direitos.
Desejamos contar com os movimentos sociais, populares, entidades e outros tantos segmentos que se interessam pela questão indígena, não para que tenham um olhar de caridade ou piedade, em apoio à nossa luta, mas que estejam conosco pela causa indígena, que hoje é também uma causa da humanidade. Uma humanidade em crise e que precisa urgentemente de todos aqueles que desejam construir outro mundo, diferente deste que está em decadência. Um mundo do Bem Viver.
Porto Alegre, RS, 19 de abril de 2011.
Fonte: Fonte: Rabeca(Cimisul)
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